Torcer Vai Além da Morte
Meses atrás, houve o enterro de um amigo. Este era um amigo de todos, dos amigos de infância que foram à cerimônia fúnebre às pessoas que ele sequer conhecia.
A Avenida do Forte, que liga as avenidas Abdias de Carvalho e Caxangá, principais vias de acesso à Zona Oeste do Recife, era seu lar. Sempre no mesmo quarteirão.
Quem residiu nos arredores da Avenida do Forte e não o conhecia, das duas uma: chegou faz pouco tempo ou tá contando lorota quando diz que morou por aquelas bandas.
Houve quem dissesse que ele se elegeria vereador só com os votos da Avenida do Forte, do bairro do Cordeiro e arredores. Digamos que ele dificilmente toparia, já que gente decente não entra para a política.
A um dos amigos de infância do morto coube a tarefa de levar a bandeira do time. Esse amigo, contador de piadas em funerais, mas desconhecedor dos rituais de colocação de bandeiras sobre o caixões, ficou sem jeito (ou condições emocionais, vai lá saber) de executar a tarefa.
Coube a um primo mais velho do morto resolver a questão, não sem antes perguntar se esse amigo poderia “perder” a bandeira.
“Nem de enterro eu gosto”, respondeu. “Só vim a este porque não podia deixar o cara ir embora sem uma bandeira, pelo menos.”
Minutos antes, esse amigo contador de piadas em funerais dissera que o empate fora de casa na noite anterior, quando já corria o velório, fora obra do espírito do morto.
Sim, o espírito do morto teria dado uma dedada no zagueiro do Santos que, surpreso, levantou o braço na medida para a bola tocá-lo. Na área é pênalti, o pênalti foi convertido e o time voltou ao Recife com um ponto na bagagem.
O velório seguiu, sucedido pelo sepultamento. Os amigos se despediram e cada um seguiu sua vida e seu caminho.
Na última segunda-feira, 7 de outubro, alguns desses amigos estiveram na reabertura do estádio da Ilha do Retiro. Outros assistiram à partida contra o Ceará pela TV, pelo rádio ou quaisquer meios necessários.
A cada gol anulado (foram dois) e a cada chance de gol desperdiçada, clamavam para que o espírito do morto agisse a favor do time. E a cada situação de perigo criada pelo adversário, ficava escancarado o esquecimento de que espíritos também agem à favor da defesa, seja na bola que raspa a trave ou na intervenção milagrosa do goleiro.
O time abriu o placar, sofreu o empate e esse parecia o resultado definitivo. No entanto, aos 49 minutos do segundo tempo, veio o gol da vitória.
Restavam cerca de dois minutos até o apito final. E foi nesse intervalo de tempo que o espírito do morto mostrou que estava ligado e claramente interferiu na trajetória da bola que beijou o travessão da equipe mandante.
Ao apito final, uma certeza tomou conta dos amigos que seguem aqui pela Terra: cada torcedor que morre não fica no céu, no inferno ou no próprio caixão acompanhando o time: ele aproveita que ninguém está vendo e entra em campo para ajudar o time por quaisquer meios necessários.
Diante disso, só resta aceitar quão infeliz é a torcida que não pode contar com um espírito como o do amigo morto meses atrás. Seja na dedada no zagueiro do Santos ou na bola chutada na trave pelo Ceará ao 51 minutos do segundo tempo em uma das partidas mais espetaculares que a Ilha do Retiro assistiu em seus 87 anos de existência.
Ser Sport Club do Recife é coisa que transcende toda e qualquer reles existência.