Sérgio está morto

Maurício Targino
3 min readApr 13, 2024

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Sérgio está morto. Não o conhecia, e nunca tinha ouvido falar dele até minutos antes (ou depois, tempo preciso só o do relógio mesmo).

Não sei se Sérgio tinha família, certamente tinha amigos. Falsos, verdadeiros, virtuais ou reais.

Não sei com que Sérgio trabalhava e se estava empregado. Não sei em quem Sérgio votou nas eleições de 2018 e 2022. Nem sequer dei uma olhada em suas redes sociais.

Tudo que eu sei de Sérgio é que ele estava comendo um espetinho na entrada de um estádio de futebol, se engasgou, teve complicações e morreu.

Fui algumas vezes a estádios. Percebi que o entorno dele em dia de jogo é lugar de gente apressada. Quem tá parado tá vendendo alguma coisa. Ou vigiando os outros. Quem tá comprando tem pressa. Quem caminha devagar tem problemas de locomoção, acesso privilegiado ou já perdeu a esperança de entrar antes do pontapé inicial.

Sérgio devia estar com pressa. Caminhando rápido, procurando o ingresso QR code no celular com uma mão e comendo o espetinho com a outra. Se estivesse com o ingresso físico ou impresso, poderia ter deixado no bolso enquanto comia e espetinho com uma mão e segurava uma cerveja com a outra. Já me disseram que ingerir líquido ajuda em casos de engasgo. Não sei nem se Sérgio bebia.

Nada disso importa agora, pois Sérgio está morto. Disseram que a ambulância demorou 10 minutos para chegar. Parece que as vias próximas ao estádio estavam congestionadas e que isso sempre acontece em dia de jogo.

Me disseram também que se o jogo fosse em outro estádio, em uma ilha distante uns 20 km dali, era só atravessar a ponte que tem um polo hospitalar. Não sei se Sérgio tinha plano de saúde, mas parece de bom tom hospitais priorizarem atendimentos de emergência de qualquer um, mesmo que não tenha plano de saúde.

Nada disso importa agora, e se leram até aqui, já sabem que Sérgio está morto.

Quem leu a notícia logo que saiu, antes de Sérgio morrer, talvez tenha rido. Ou feito piada. Não por crueldade, mas porque comer um espetinho na entrada ou na saída do estádio é algo tão normal quanto o próprio futebol. Nas poucas vezes que fui a estádios, comi espetinho em algumas delas.

Numa dessas idas ao estádio, levei meu filho para ver um clássico. Foi 0x0. Na saída do jogo, ele comeu um espetinho apelidado de sassissão (parece que é a pronúncia regional de salsichão). Rimos disso e encontramos nossa carona. Foram bem legais e deixaram ele comer dentro do carro. Sorte que ele quis sem farofa, provavelmente teria sujado o banco.

Fiquei pensando se Sérgio tivesse deixado pra comer o espetinho na saída. Tô ligado que fica mais barato. Acho que Sérgio não quis comer um salgado no estádio porque dizem que geralmente é caro e sem graça. Mas nada disso importa, pois Sérgio está morto.

Mas enquanto Sérgio lutava pela vida, um jogador chamado Felipinho marcou o gol mais foda da história do futebol. Houve o empate da outra equipe, resultado que levava para a disputa de pênaltis. No finalzinho, saiu o gol da vitória da equipe da casa. Parece que foi emocionante.

Mas Sérgio não viu nada disso. E nem verá. Porque Sérgio está morto.

Está morto porque foi ver um jogo de futebol lá na puta que pariu sem um hospital por perto. Um estádio para 45 mil pessoas longe de um hospital. Longe de tudo, até do terminal de ônibus mais próximo.

Disseram que iam construir uma cidade ao redor do estádio, que foi inaugurado em 2013, para a Copa do Mundo do ano seguinte. Estamos em 2024 e tem pouca coisa que lembre uma cidade ali. Entendo que construir cidades leva tempo, e o que são 11 anos diante disso.

Mesmo que essa cidade saia do papel, Sérgio não a visitará. Porque Sérgio está morto. Um dia você vai morrer, eu vou morrer, todo mundo vai morrer. Espero que o seu dia demore e o meu também. Mas Sérgio morreu em dia de jogo, passou mal minutos antes de ver um jogo épico, segundo o que foi falado.

Sérgio torce pelo mesmo time que eu, meus filhos, meus pais, meus avós. Sim, Sérgio torce.

Não é por morrer que se deixa de torcer para o Sport Club do Recife.

Continua aqui

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Maurício Targino
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Written by Maurício Targino

Pai de meninos, marido de mulher, limpador de caixa de areia de gatas e datilografista.

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